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Considerações sobre a Força Maior em tempos de pandemia

Dentre os principais impactos ocasionados pela pandemia do coronavírus, destaca-se a crescente dificuldade no cumprimento contratual em virtude da crise econômica deflagrada pela paralisação de importantes atividades econômicas no curso da quarentena.

Neste contexto, temos sido questionados a todo momento a respeito da crise surgida com o advento da pandemia e se este cenário se insere no conceito de força maior e, ainda, quais seriam as implicações decorrentes de eventual inadimplemento contratual por dificuldades financeiras no atual momento.

Para responder, primeiramente é preciso situar que as relações jurídicas aqui abrangidas serão as de natureza privada, sobre as quais incide o regime jurídico estabelecido pelo Código Civil brasileiro.

A título didático, optamos por dividir o tema relativo ao descumprimento contratual em dois distintos cenários:

(i) inadimplemento em razão de fato externo cujos efeitos impedem que a obrigação seja cumprida, como nos casos de força maior (art. 393, CC);

(ii) quando o cumprimento das prestações se torna extremamente oneroso a uma das partes, impossibilitando o efetivo adimplemento da obrigação no curso do tempo em razão de eventos extraordinários e imprevisíveis, o que se denomina onerosidade excessiva (art. 478, CC), o qual será abordado em artigo próprio.

Inadimplemento por Caso fortuito ou Força Maior

Sem pretender esgotar o tema, tanto o caso fortuito como a força maior são institutos legais que excluem a culpa do devedor que, em razão de fato imprevisível e invencível, encontra-se impossibilitado de cumprir com sua obrigação contratual de forma total ou parcial.

São, portanto, excludentes de responsabilidade, tratados sem diferenciação pelo Código Civil brasileiro em seu art. 393:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Em relação à diferença entre os conceitos, diversas são as linhas doutrinárias existentes na doutrina brasileira, de modo que, a depender da linha adotada, um mesmo fato imprevisível poderá ser considerado como um ou outro, afinal, o efeito sempre será o mesmo: ausência de responsabilização do devedor que não cumpriu com a obrigação.

Por tal motivo, parte da doutrina os considera como sinônimos, porquanto inexistem diferenças práticas em suas aplicações, sendo este o posicionamento que adotamos neste artigo para fins de explanação do tema.

Portanto, o caso fortuito ou a força maior ocorrem quando um evento superveniente de efeitos inevitáveis impede o cumprimento contratual por alguma das partes. Assim, são institutos que se prestam a retirar do devedor o ônus de indenizar a outra parte caso não consiga adimplir a obrigação.

Colocado isso, seria a pandemia do coronavírus hipótese de força maior?

De antemão, a resposta para essa indagação dependerá da análise de cada caso concreto, porquanto as circunstâncias fáticas que impedem o devedor de cumprir com a obrigação serão o fator determinante para eventual caracterização de força maior. Por isso, a pandemia do coronavírus não poderá ensejar, de maneira generalizada e abstrata, a exclusão de responsabilidade do devedor à luz do instituto.

Isso considerado, é perfeitamente possível que determinado evento seja imprevisível, porém de consequências evitáveis. Com isso, espera-se que o devedor, diante de um fato extraordinário, tome as diligências necessárias para evitar o descumprimento da obrigação, porquanto caberá a ele comprovar que o inadimplemento - total ou parcial - se deu por barreira intransponível.

Dessa forma, caso se comprove que o devedor poderia ter evitado o inadimplemento, não restará caracterizada a força maior e este será responsabilizado .1

Nesse aspecto, é uníssono o entendimento do STJ no sentido de que a excludente de responsabilidade por força maior só se aplica quando presente os seguintes pressupostos:

(i) quando existente fato necessário que torna absolutamente impossível o cumprimento da obrigação (necessariedade), o que não se confunde com dificuldade ou onerosidade;

(ii) quando ausentes os meios para evitar seus efeitos (inevitabilidade); e

(iii) desde que não decorra dos riscos esperados da atividade empresarial desenvolvida, isto é, fortuito interno (REsp 1.450.434 - SP).

Em outras palavras, para ser considerado como força maior, o fato deve ser estranho à organização da empresa e, portanto, não relacionado aos riscos inerentes à atividade empresarial exercida, ao que se atribui o nome de fortuito externo. Ao contrário, caso o fortuito seja interno, não haverá a exclusão de responsabilidade.

Quanto ao fortuito interno, o Ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.450.434/SP, declarou que este, "apesar de também ser imprevisível e inevitável, relaciona-se aos riscos da atividade, inserindo-se na estrutura do negócio".

Além disso, o STJ determina ser imprescindível a comprovação do nexo causal entre o fato ocorrido e a absoluta impossibilidade de cumprimento da prestação, de modo que, aquele que já estava em mora ou inadimplente não poderá se favorecer da excludente como forma de se eximir da obrigação contratual.

Bem antes da pandemia, o entendimento pacificado no STJ era no sentido de que crises econômicas não configuram motivo de força maior, hábil a justificar rescisão contratual sem indenização (REsp 779798/DF). Inclusive, o Tribunal já se posicionou no sentido de que eventuais dificuldades financeiras do empreendimento estão inevitavelmente abrangidas pelos riscos inerentes à atividade econômica, não podendo ser considerados fortuito externo (REsp 1.341.605/PR).

Compreendido isso, em que pese a inegável dificuldade que grande parte dos empreendimentos nacionais estão enfrentando em razão da paralisação das atividades, o entendimento que prevalece no direito brasileiro é que os efeitos decorrentes da pandemia deverão ser analisados caso a caso, a fim de que se constate a absoluta impossibilidade de cumprimento contratual.

Portanto, caso se comprove que determinada obrigação não possa ser cumprida em virtude dos fatais efeitos decorrentes da pandemia, ela poderá ser extinta ao fundamento de força maior, sem qualquer responsabilização pelo devedor, com a devolução dos valores que já tenha porventura recebido. Além disso, haverá a possibilidade de alegar exceção de contrato não cumprido (impossibilidade temporária) ou proceder ao abatimento do preço (impossibilidade parcial), temas que serão tratados em artigos específicos.

Conclusão

Em face do exposto, o entendimento que deve prevalecer no bojo de qualquer relação contratual é o da força obrigatória dos contratos, de sorte que a força maior deverá ser analisada caso a caso, não se prestando a simplesmente eximir o devedor de cumprir com suas obrigações, mas unicamente a excluir sua responsabilidade de indenizar a outra parte pelo descumprimento da obrigação, absolutamente obstada por fato externo.

Como já citado acima, o posicionamento do STJ no sentido de que crises econômicas não configuram força maior já é pacífico, todavia, considerando que nossos tribunais estarão diante de uma situação sem precedentes na história brasileira, havemos de aguardar, nos meses subsequentes, novos posicionamentos por parte da jurisprudência nacional.

Por outro lado, caso o devedor se depare com dificuldades gerais relativas ao cumprimento contratual, em virtude, por exemplo, de dificuldades patrimoniais durante a pandemia, o caminho mais promissor permanece ser a renegociação livre entre as partes, pelo o que recomendamos que o Judiciário seja acionado somente em último caso. Em nosso próximo artigo sobre Contratos, abordaremos o instituto da onerosidade excessiva e demais desdobramentos da crise financeira que assola, gradativamente, a capacidade econômica de grande parte dos brasileiros.

Carolina Júdice, advogada do escritório Abreu Júdice

Fontes para consulta:

Conjur

JusBrasil

Migalhas

Senado

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